quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Crônicas de uma Saudade por Siovani Rodrigues Moreira

Crônicas de uma Saudade - 6   
                                                          
6 – Crônicas de uma Saudade


Autor Siovani Rodrigues Moreira




O vento sopra onde quer, e lhe ouves a voz, mas não sabes de onde ele vem nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.”                                                                              (João 3,8)


Já me perguntaram o porquê desse título, embora já o tenha deixado transparecer antes, vou tentar explicar um pouco a respeito dessa Saudade.


Quando nasci, uma série de enganos parece ter ocorrido simultaneamente. Esta impressão ficou devido a certos eventos um tanto, como dizer, no mínimo curiosos.


O primeiro engano parece ter ocorrido a respeito do momento do nascimento, pois me foi dito, alguns anos depois, evidentemente, ter nascido cerca de onze horas da noite do dia 5 de julho, mas um tio insistiu para que me registrassem no dia 6, pois este era o dia de seu aniversário, e assim foi feito, fui registrado como nascido a uma hora do dia 6. E por causa dessa pequena alteração é claro que os céus ficaram muito confusos com qual horóscopo eu deveria ser conduzido, portanto, nasci com o ascendente no signo da confusão.


Além dessa confusão de dia e hora, não é que mudaram também o lugar do meu nascimento? Pois é, nasci em Itaperuna, estado do Rio de Janeiro, onde morava minha avó, para onde minha mãe foi para ter sua assistência naqueles dias, e fui registrado como nascido em Miracema, cidade vizinha também naquele estado. Pois então já eram duas enganações que aprontavam com meu horóscopo, além da camuflagem do dia e hora, também o lugar estava deslocado. Acredito que o diabo deve ter-se aproveitado bastante da situação.


Acham que parou por aí, ainda não. Itaperuna e Miracema são cidades fronteiras de Minas Gerais e logo toda a minha vida seria desviada para este estado. Sou tão mineiro quanto qualquer um nascido em Minas, embora o diabo tenha tentado enganar-me. Mais estranho ainda, meu pai contou-me que, nascido em uma fazenda, ela pertencera a Minas Gerais, com adequação das fronteiras mudou de lado. Vejam, minhas raízes mineiras são bem mais profundas. Faz-me lembrar um causo contado pelo Boldrin em que um fazendeiro turrão ficou insatisfeito porque, ao alterar as divisas entre os estados, mudaram sua fazenda de Minas Gerais para São Paulo e, de imediato, pôs à venda sua fazenda. Quando lhe perguntaram por que estava ele vendendo seu torrão, onde nascera e criara sua família, respondeu que ele não se dava bem com o clima de São Paulo. É mais ou menos por aí, estou bem identificado com o jeito mineiro de ser, encravado no meio das montanhas e no meio de mim mesmo, este morro muito mais difícil de ser transposto.


Agora vejam, outro fato estranho foi que parece que se enganaram com o meu nome, pois deixa a impressão de um erro cometido por um escrivão incompetente como tantos havia por esses interiores. Talvez eu devesse chamar Giovani, tradução italiana de duas grandes personagens dos evangelhos para o nome de João, mas não, meu pai nem me soube explicar de onde ele leu esse nome, mas foi intencional mesmo. Assim fui pela vida afora com um nome que ficava parecendo um erro, algo assim como Soão. Não estou reclamando, ele me deu uma identidade que nem necessita de um sobrenome para identificar-me, o que pode ser um problema no caso de não me comportar muito bem.


 Acho que fiquei divagando e perdi o senso, deixem-me voltar para o objetivo deste texto. Mesmo com todos os enganos fui criado por uma família católica, bem dentro da igreja, posso mesmo dizer quase dentro do altar, participando de todas as festas com uma alegria imensa por cumprir meus deveres e tendo que inventar alguns ridículos pecados para não ter que toda semana confessar os mesmos e iguais. Logo que tive suficiente idade fui coroinha e para a felicidade de todos parti, aos dez anos, deixando minha família.


E parti para o cemitério. Não, desculpem-me pelo lapso inconsciente, parti para o seminário, por isto toda a minha família ficou feliz, não foi porque estava livre de mim como podem ter imaginado. Fui para Campo Belo iniciando minha jornada como mineiro. Era 1964. Naquele tempo levava dois dias na viagem, de Miracema ia a Leopoldina e a manhã do primeiro dia ia embora; à tarde fazia o percurso para Juiz de Fora, onde dormia na casa paroquial da Igreja de Santa Rita de onde guardei boas lembranças de um padre camarada (Padre Haroldo); no dia seguinte embarcava para Belo Horizonte onde chegava pela hora do almoço e, à tarde, finalmente tomava o ônibus que me levaria a Campo Belo. Este percurso tornou-se importante em minhas memórias pelo que, muitos e muitos anos depois, um dia me revelou uma estranha coincidência que espero contar em outra crônica.  


Como menino que era, tive momentos bons e ruins pelos três anos que lá passei, mas como a adolescência foi se instalando, junto com ela fui perdendo a essência de criança que podia acreditar em tudo que afirmavam. E crescia comigo a ciência e a capacidade de criticar e as dúvidas foram tomando-me. Foram muitos os padres com quem por lá convivi, dos perfis mais variados, desde aqueles onde podíamos enxergar uma piedosa devoção até àqueles onde víamos pura vaidade e arrogância, e outros mais como em qualquer porção de nossa sociedade. Antes que me façam a pergunta sobre abusos, coisa comum de ouvir quando digo que estive no seminário, respondo que nunca sofri e nunca soube que quaisquer dos meus colegas os sofressem.


Meu primeiro grito de independência foi dado no final daqueles três anos. Eu sabia que iria causar um rebuliço na família, mais que rebuliço, uma enorme decepção, mas mesmo assim, ao voltar para casa de férias, comuniquei a todos que não retornaria e que nada poderia ser feito para que eu o fizesse. Tive compaixão das minhas tias.


O lapso que cometi acima a respeito do cemitério talvez tenha sido porque lá também ficou enterrada a minha crença na igreja, e, consequentemente, por confundir o continente com o conteúdo, em coisas do espírito. E sem eu perceber que era esta a falta, a aridez foi tomando conta do meu ser e eu fui adentrando um deserto onde passei a conhecer só a sede, ou a morte (“...e deixa os mortos sepultar seus mortos”, Mt 8,22).


E fui subindo a escada, ora empurrado, ora empurrando. A dor maior não era causada pelo tamanho dos degraus, mas em ver aumentar o abismo que ia crescendo, deixando-me tão distante daquele ser que podia se perder no mundo dos seus gibis em aventuras de Tarzan, do Zorro, do Cavaleiro Negro e muito outros heróis, mas também podia acreditar quando lhe falavam do Amor. Talvez aquele menino pudesse vislumbrar sem entender os reais motivos que este era o mote que existia em todas aquelas aventuras de heróis e jornadas fantásticas. E durante a subida a desilusão de um Dom Quixote retornado à racionalidade suprimia qualquer possibilidade de contato com aquela Esfera.


A saudade foi crescendo, camada por camada, e tornou-se tão doída, tão desesperada, que quando não mais parecia ser suportável houve um choque quando alguém sussurrou que era possível vê-lo renascer, que era possível ressuscitá-lo. E foi quando um velho amigo fez-se vivo.


... ele já estava lá...



                       ***



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