domingo, 29 de setembro de 2013

Reflexos do V Encontro

                                                                                                                                               Por Siovani

Sempre da esquerda para a direita: no chão: Benone, Marcos Rocha, Lulu, Nicodemos, Clayton, Antônio de Ázara, o menino Otávio (na cadeira). Assentados no palco: padre José Cláudio, Edgard, Chicão, Olímpio, Santana com Laura no colo , José Geraldo, Alberto Medina,Tupy, Roosevelt, Eustáquio, Rafael, Siovani e Lua. Em cima do palco: Geísa, Cátia, Dita, Liana, Nazaré, Cecília, Marta, Catarina, Marina, Ica, Marina, Maria José e Rosimere. Foto de 21 de setembro de 2013. Local: espaço onde foram os dormitórios  dos ex-seminaristas que ali permaneceram depois de 1963.

Sexta-feira, 20 de setembro de 2013.


A estrada faz uma curva caprichosa e segue à direita para cumprir seu destino de leva e traz, mas nós a abandonamos para seguir em frente, relaxados pela sensação de alívio que nos vem quando chegamos ao nosso destino. E, novamente, este destino é Campo Belo: uma rotatória nos acolhe para nos arrancar da estrada e jogar-nos, como em passe mágico, dentro da cidade, sem aquela tão normal periferia feia e depauperada que recebe os viajantes em nossas cidades.


Naquela rotatória nasce a rua principal num ondular de subida que ainda esconde o centro da cidade. Do alto daquela ondulação a cidade irrompe em nossos olhos e afunda-nos no passado, onde a memória vai repousar.



O olhar, apagado já pelo cansaço, descortina por aquela
rua o colégio ainda lá longe. Foto de 20 de setembro de
2013 a partir do alto da Avenida Afonso Pena, Campo Belo,
Minas Gerais, Brasil

Quem ali chega agora é um menino alquebrado pelo peso da mochila, carregada de laranjas, que o empurrou por algumas léguas. O olhar, apagado já pelo cansaço, descortina por aquela rua o colégio ainda lá tão longe. O olhar corre pela rua que novamente sobe em busca do outeiro que culmina na praça central, e aquele olhar busca alento para percorrer aquela pesada subida em passos não mais tão firmes quanto na debandada da manhã alegre em que partira ávido pelo dia de fartura à frente. 


Isso tudo se passa num átimo, porque agora o carro incansável nos entrega, bem ali no meio da descida, ao Hotel Champagne. Chegamos sob o crepúsculo das seis horas, hora em que um certo ar de mistério envolve a cidade. E lá no hotel já nos recebem alguns dos colegas que também suaram por aquela rua sob a carga das laranjas e das esperanças.




Espaço Antares, um local tranquilo e agradável  onde o Santana e seus familiares haviam preparado uma bela recepção. Foto de 20 de setembro de 2013. Aparecem da esq. para a dir.: Cecília e José Geraldo; Olímpio; Antônio de Ázara e Ica; Tupy e Marina; e Liana.
Geísa recebe das mãos do Eustáquio,
o coordenador deste encontro,      um
 prêmio em louvor à competência e à
simpatia em exercê-la.  Foto de 21 de
de setembro de 2013.
Um pequeno relaxamento após a tensão da estrada em um refrescante banho e seguimos para o Espaço Antares, um local tranquilo e agradável onde o Santana e seus familiares haviam preparado uma bela recepção. Mas antes, o anjo da guarda do Eustáquio, e nosso, nossa simpática amiga Geísa, sempre presente a ajudar a organização dos encontros, recebia-nos com um crachá para cada um a troco de uma pequena colaboração para custear as despesas do V Encontro.


A lua cheia também veio nos brindar com sua presença misteriosa no horizonte e o nosso amigo Walter, o Lua Cheia, encheu-se ainda mais num sorriso de satisfação para agradecer ao Eustáquio, nosso presidente, a bela homenagem que este lhe prestava com convidada tão ilustre.



A noite que ainda nos trouxe a bem-vinda presença dos cole-
gas Clayton (2); José Geraldo (4) e Roosevelt (6). Os núme-
ros indicam a posição dos citados, a partir da esquerda.
(clique nas fotos para ampliá-las lado a lado. Fotos acopladas. 
A lua ia subindo no céu sobre a cidade e os nossos colegas, pouco a pouco, apareciam trazendo seus sorrisos e abraços na costumeira alegria que sustenta os nossos encontros e nos faz esperar com ansiedade o ano escorrer até o próximo. Enquanto nos reencontrávamos, a irmã do Santana distribuía pelas mesas deliciosos acepipes que nos fartaram pela noite adentro. Noite que ainda nos trouxe a bem-vinda presença de colegas que pela primeira vez participaram de nosso encontro, o Roosevelt, um dos primeiros seminaristas, e, dali mesmo de Campo Belo: o José Geraldo e o Clayton. Este, um colega que entrou comigo em 1964, e que me trouxe uma alegria particular em revê-lo. Ausências sentidas dos colegas de Juiz de Fora que chegariam apenas na manhã do sábado.


E também pudemos contar alegremente com a agradável presença do Padre Guilherme, representante dos antigos padres crúzios, que aceitou nosso convite para deixar Belo Horizonte e participar do nosso encontro.


Identificados e cumprimentados os encontristas, o Lulu foi solicitado a fazer uma explanação sobre o nosso blog e a mostrar como encontrá-lo na vastidão da internet. Desnecessário comentar aqui sobre esses temas, pois estáis aqui.


Maria José exibe um dos belíssimos
 livros que ganhou pelo segundo lugar
do concurso de fotos.
Flaviane, que representou a sua mãe, Fá-
tima, exibe o prêmio do primeiro lugar
do concurso de fotos: rosas desidratadas
emolduradas em pátina trabalhada.
As fotos vencedoras do Concurso de Fotos do IV Encontro estavam em exposição no recinto, e o Marcos Rocha, que praticamente sozinho promoveu, coordenou, revelou as fotos e patrocinou, fez a entrega aos vencedores da premiação. Ouvimos com prazer muitos ohhhs! de júbilo pelos belos prêmios recebidos; estes acenderam a cobiça de todos pelos futuros, o que certamente causará uma avalanche de fotos nos próximos concursos. O Tupy foi bastante alfinetado pela ausência na foto que certamente ganharia o prêmio máximo se ele estivesse presente. Ele se escusou, pedindo que culpassem a natureza, que nos faz exigências inadiáveis.
Santana, representando seu filho Jr,
recebe alguns livros pelo terceiro lugar
do concurso de fotos.
Na foto, Laura (4 anos) ao lado de 
Otávio (7 anos) em linda apresenta-
ção.
Para não nos deixarem dizer que nossos encontros são encontros de senhores de cabelos brancos e de suas respectivas senhoras, duas graças irromperam em nosso meio, o Otávio, 7 anos, já nosso velho conhecido, filho do Lua, e a Laura, 4 anos, netinha do Santana; esta também acompanhada de sua bela e simpática mãe, Flaviana. Liberado um microfone para declamações, as duas crianças roubaram a cena com desenvoltas e animadas canções que exigiam aplausos e pedidos de bis.



Catarina cantou e declamou.
Ouvimos, ainda, poemas e canções antigas entoadas pela Catarina, pela Dita e pelo Lua, que, enciumado talvez com o sucesso das crianças, declamou atrapalhadamente dois poemas, pois a Germana já estava cobrando seus vapores, e só para lembrar-lhe como é o poema que era o campeão de apresentações em nossas aulas de declamação (todos o aprendíamos de tanto ouvi-lo), eis o original:


      


Dita cantou e encantou








Lua e Germana declamam duas poesias







Visita à Casa Paterna

                              Luiz Guimarães

Como a ave que volta ao ninho antigo

Depois de um longo e tenebroso inverno,

Eu quis também rever o lar paterno,

O meu primeiro e virginal abrigo.


Entrei. Um gênio carinhoso e amigo,

O fantasma talvez do amor materno,

Tomou-me as mãos, olhou-me grave e terno,

E, passo a passo, caminhou comigo.


Era esta a sala... (Oh! se me lembro! e quanto!)

Em que da luz noturna à claridade

Minhas irmãs e minha mãe... O pranto


jorrou-me em ondas... Resistir quem há-de?

Uma ilusão gemia em cada canto,

Chorava em cada canto uma saudade.  



O Seoldo, mesmo permanecendo em sua longínqua morada, não podia faltar ao nosso encontro, por isso tratou de contratar uma transposição bilocal com destino a Santana do Jacaré, mas com escala em Campo Belo. E, assim, com o corpo acomodado, sem fazer nada, em uma piscada de olho estava incorporado na voz potente do Marcos Rocha e falou (a caixa alta, pelo que pude apreender, foi para simular a voz potente):



AMIGOS COLEGAS EASISTAS,


Marcos Rocha vestiu o pensamen-
to do Seoldo com sua potente voz
de veludo. 
QUE TENHAM UM BOM ENCONTRO E SE COMPORTEM DIREITINHO, SOBRETUDO EM SANTANA DO JACARÉ! ESTAREMOS (JUDITE E EU) AÍ  EM PENSAMENTO COM VOCÊS. ABRAÇOS E LEMBRANÇAS A TODOS!


SANTA ODÍLIA (SO), O VELHO SEMINÁRIO

MISTURADO COM COLÉGIO DOM CABRAL

SOLTOU NO MUNDO UM GRUPO VISIONÁRIO

BUSCANDO SEMPRE O CAMINHO PRINCIPAL


NO SANTA ODÍLIA SÓ SE PENSAVA NO FUTURO

NO SANTA ODÍLIA SE REZAVA PRA CHUCHU

NO SANTA ODÍLIA, TUDO VERDE, TUDO PURO

ARROZ, FEIJÃO, ANGU; ÀS VEZES, TUTU


NO SANTA ODÍLIA ERA TUDO ORGANIZADO

NO SANTA ODÍLIA SE ESTUDAVA COM PRAZER

NO SANTA ODÍLIA NADA ERA DECORADO

NO SANTA ODÍLIA SE COMIA PRA VALER


NO SANTA ODÍLIA SE TRADUZIA O LATIM

NO SANTA ODÍLIA SE CANTAVA NA CAPELA

NO SANTA ODÍLIA ERA SÓ CAMA DE CAPIM

NO SANTA ODÍLIA NÃO SE FICAVA NA JANELA


NO SANTA ODÍLIA HAVIA HORA PARA TUDO

NO SANTA ODÍLIA O MELHOR ERA O RECREIO

NO SANTA ODÍLIA ROUPA LIMPA, NÃO BARBUDO

NO SANTA ODÍLIA ERA SÓ DEZ OU NOVE E MEIO


NO SANTA ODÍLIA SE ABAIXAVA A CABECA

NO SANTA ODÍLIA A CABEÇA NÃO CAÍA

NO SANTA ODÍLIA ERA SÓ DEUS OBEDEÇA

NO SANTA ODÍLIA TODOS FILHOS DE MARIA


NO SANTA ODÍLIA ERA POUCA A PORCARIA

NO SANTA ODÍLIA NINGUÉM ERA DESBOCADO

NO SANTA ODÍLIA NAO HAVIA CORRERIA

NO SANTA ODÍLIA O RUIM ERA O PECADO
Seoldo e Judite, os mais presentes dos
ausentes. Foto de setembro de 2012 


NO SANTA ODÍLIA CADA UM COM APELIDO

CANHÃO, MAMONA, PICOLÉ, CUTIA

PIGMEU, QUADRADO, PACU, ESPRIMIDO

NO FIM, TODOS FILHOS DE MARIA!


O SANTA ODÍLIA ERA COMO FORMIGUEIRO

NO SANTA ODÍLIA TUDO ERA MARCADINHO

NO SANTA ODÍLIA SEMPRE HAVIA BISCOITEIRO

O SANTA ODÍLIA', NO FINAL, FOI NOSSO NINHO.


(Easista Seoldo, Setembro de 2013, V ENCONTRO)



E a noite ia correndo em conversas animadas, e a Germana corria nas gargantas secas de tanta fala, e, então, o inevitável! O matreiro Baco fez questão de mostrar sua personalidade na voz mais rascante de alguns que insistiam em afrontar os seus poderes, e então... Então nada, tudo correu maravilhosamente até que fomos em busca de uma cama para deitar nosso cansaço. E depois me disseram que os últimos só partiram cerca de uma hora da madrugada. E boa noite a todos, até amanhã.



Sábado, 21 de setembro.


As poucas horas de sono não foram, como de costume, impedimento para o despertar com as primeiras luzes do dia, que nos trouxeram o chilreio inconsequente dos pássaros e o matraquear insolente das maritacas em bando. À espera da hora para as atividades do dia, restei-me na cama a ver o belíssimo filme de Jean Cocteau, Orpheu, onde o poeta dedilha imagens inusitadas sobre o outro mundo, que pode ser penetrado através dos espelhos, portas que são para aquele mundo; esquisita e bela metáfora para o nosso caminho indelével pelo tempo que podemos contemplar nos espelhos. Porém, sem me ater ao lado sinistro, estava eu do outro lado do espelho, percorrendo um caminho inverso rumo aos meus dez anos, quando cheguei em Campo Belo, com ainda todo o mundo criado na minha infância a me suster. E por aquele espelho podia eu contemplar aquele mundo a ruir e sobre as ruínas ver nascer um outro mundo, carregado de dúvidas e insubmissões.


O padre Wilson celebrou a missa ajudado pelos padres José
Cláudio e Elione.
Mas às dez horas tínhamos novo compromisso. Descemos para o café onde já nos reencontramos com diversos easistas (esta palavra foi criada pelo Seoldo ou Marcos Rocha para referir-se a nós, ex-seminaristas da Escola Apostólica Santa Odília, EASO, e também passo a adotá-la). Dirigimo-nos, em seguida, para a Igreja da Santa Cruz, onde os novos padres crúzios fariam uma missa para o grupo. Para isso vesti-me com o meu mundo dos dez anos, mas naquele mundo havia uma transição, os padres ainda não estavam nos altares completamente de frente para nós, o latim ainda não havia sido esquecido e um sentimento sisudo e silencioso do sagrado era acolhido nas igrejas. Sem nenhum saudosismo, apenas constatando a mudança, a criança percebeu que os novos padres não preservam aquela aura sagrada em que ela fora criada e ensinada a respeitar. Muda o mundo, mudam os indivíduos; as catedrais não precisam mais contar histórias nos seus vitrais e nas suas paredes, substituídas pelo ferro bruto das ondas da nova mídia. O padre de hoje veste-se como nós, nada o diferencia, seu poder mítico está soterrado junto com o latim.

 

Durante a missa chegaram os easistas de Juiz de Fora, e como o Padre Wilson, que celebrava ajudado pelos padres José Cláudio e Elione, conclamara-nos a trocar votos de paz, de repente a igreja se viu envolta em confusão de abraços e votos que também serviram como efusiva recepção aos que chegaram. A alegria foi enorme, envolvida pela música que o coral, que acompanhou a missa, entoava.


Tupy  entrevista o Padre Guilherme.
Comungados os que tinham fome, insaciados os que não puderam, a missa terminou e o Tupy requisitou a presença, ali mesmo na capela, do Padre Guilherme para uma entrevista. As perguntas já haviam sido anteriormente enviadas aos padres de Belo Horizonte e suas respostas foram lidas, e depois acrescidas com comentários do padre ali presente. Ficamos sabendo ou fomos relembrados da história dos crúzios no Brasil: porque vieram, as dificuldades encontradas e a superação de tudo. Mas essa entrevista será publicada posteriormente aqui neste blog.


Finda a entrevista fomos convidados a visitar as obras do convento, ali ao lado da igreja, onde nos aguardava uma caipirinha e um sol de meio-dia que preocupou os destelhados, assim como eu, que não têm a proteção natural dos cabelos, pois era a primeira exposição ao sol primaveril nesta temporada. As obras estão apenas nas fundações, mas o entusiasmo do Padre Wilson nos mostrava os dormitórios, a cozinha e todas as dependências futuras do convento. E o Nonato, que tem na barriga um relógio a vácuo, que dispara um alarme estrondoso quando sua hora chega, já circulava nervoso pedindo o cumprimento da agenda sagrada do almoço em atraso.


Os novos padres crúzios também nos ofereceram um almoço
Os novos padres crúzios também nos ofereceram um almoço servido onde antes foram nossos antigos dormitórios, espaço agora transformado em um salão de eventos do colégio. Após o almoço o Padre Wilson nos exortou novamente, pois lá em Nova União já tinha lançado a ideia, a participar no esforço da obra na campanha “Um milhão de amigos" de colaboradores, apelo que não precisaria ser feito para lembrar-nos que somos gratos àqueles antigos padres crúzios que nos sustentaram por alguns anos e nos propiciaram os estudos gratuitos. As camisetas da campanha foram rapidamente adquiridas pelos presentes.


Tarde livre, a programação do encontro nos chamava para um jantar em uma churrascaria nova, recentemente inaugurada. As nossas mesas unidas ocuparam toda a extensão do local e as conversas animadas distraíam os aborrecimentos causados pelo churrasco servido; digna de nota, apenas a muçarela, da qual ouvi elogios. Mas nada é suficiente para causar-nos dissabores quando estamos reunidos; com bom churrasco ou não, nossa festa está garantida. E a noite também foi se alongando e retornamos para o hotel quase à meia-noite.



Domingo, 22 de setembro.


O dia amanhecia com a promessa de um belo passeio a Santana do Jacaré, cidade onde as turmas mais novas faziam piqueniques e onde os mais antigos passavam parte de suas largas férias. Porém, como o Seoldo já nos antecedeu com uma crônica deliciosa sobre a cidade, remeto-vos, aos que ainda não a conhecem, a ela, com a promessa de boas gargalhadas (crônica publicada neste blog em 2 de agosto de 2013: Férias em Santana do Jacaré); e por aqui vou limitar-me ao nosso passeio.


Antônio José Ferreira, o Santana, quando anunciava: "Agora
vamos passar por..." (já havia passado -- rs rs rs)
Saímos do hotel num ônibus que, se humilhava a jardineira lá de Nova União por seu porte, não contagiava a todos com a mesma galhardice. Santana, não a cidade, mas o Antônio José que lhe herdou o nome, foi intimado a se fazer de cicerone. Ele bem que tentou, mas quando ele anunciava: "agora vamos passar por...", invariavelmente estava atrasado: "Ah, já passou!". Até que uma deu certo, quando ele anunciou que íamos passar por uma fazenda de confinamento de gado que existia no lado esquerdo da estrada. Foi apressado e com satisfação que o Otávio gritou: "O lado esquerdo é meu". Foi seu pai quem nos contou que, para distraí-lo nas viagens, eles faziam apostas sobre quem avistava mais bois, cada um com um lado da estrada.


E chegamos às margens do Rio Jacaré, que tantas recordações deixaram nos easistas. O Otávio, para consolar o pai, disse-lhe que contou oito bois no lado direito da estrada, portanto, o placar deve ter ficado cerca de 299 a 8. Abriu-se uma porta, a do ônibus também, para uma sessão de fotos com o rio indiferente posando preguiçosamente ao fundo, mal sabendo que era o personagem principal de toda a história. Ainda tivemos tempo de perceber que além do saber cachaceral, o Lua entende também, quem diria, de água, pois nos deu uma aula sobre a maneira de tirar a areia do rio para desassoreá-lo. E assim os nossos encontros também nos enchem a cada dia de mais saber e cultura.


Mãe de Toinzé, Margarida Barbosa Diniz: a graça, a simpatia
e a dignidade estampadas em seus cabelos brancos imaculados. 
Santana do Jacaré é uma pequena cidade do tipo que o nosso cicerone nos mostrava: "Vejam ali... Ah! Já passou!", mas, além do rio, conta com uma família acolhedora que nos recebeu com prazer extremo, apesar do cansaço que lhe levamos. A primeira acolhida foi da própria mãe do Toinzé: a graça, a simpatia e a dignidade estampadas nos seus cabelos brancos imaculados. E, aos poucos, toda a família foi surgindo, a Laura e sua mãe, outro filho, a esposa Fátima, que por motivo de saúde não comparecera em Campo Belo, irmãos, sobrinhos e papagaio.


O Ibama levou os jacarés,
ficaram as miniaturas e o
nome da cidade. 
A história registra que Santana do Jacaré teve dois jacarés, que o povo da cidade tratava com as tripas de galinhas, pois das carnes os jacareenses é que se fartavam, mas, mesmo assim, conta-se que um jacaré comeu a pata do outro, que ficou manco. Os dois cascudos viviam satisfeitos secando a pele ao sol na beira do rio até que, num belo dia daqueles em que as autoridades levantam com a vontade férrea de fazer o bem prevalecer, o Ibama levou os judiados bichinhos para seu abrigo aconchegante, onde, sem nenhum exagero, os pobres morreram três dias depois, e, assim, Santana só não perdeu o jacaré do seu nome, mas eles deixaram muitas lembranças espalhadas pelas paredes da cidade, jacarezinhos em miniaturas, com hábitos noturnos.


Mas, como acabam as boas histórias, 
a mocinha (Ica) e o mocinho (Ázara)
mostraram a que vieram.

Ninguém reclamou da demora da banda, o papo ali na praça seguia animado, mas a aflição do Toinzé foi grande. Se a banda vem... A banda não vem... A banda vem, vamos ver a banda; se não vem, é porque foi ligeirinha: "Olha a banda! Ih, passou!". E porque todos estávamos mesmo à toa na praça, a banda passou e chegou; não só a banda, o terno de congado também. A alegria se espalhou pela praça, e, muito além da alegria, o baile dançante que o Antônio de Ázara protagonizou: se a Ica não quer dançar, azar, pois há quem queira; do meio do congado arranjou uma parceira atrevida e lá se foi a bailar; e quando o congado recomeçou sua cantoria, enrolou-se no meio das meninas, de mãos dadas, cantando, dançando, agachando, subindo novamente. Ufa!




Vamos almoçar que o Nonato tá nervoso com a hora do despertador ultrapassada.


Lá na Pousada do Juca um espetinho pronto já nos esperava saindo da brasa. O churrasquinho e a cerveja serviram como antepasto para o almoço que em seguida foi servido. Além da cerveja, surpresa das surpresas para aqueles meninos que não mediam distâncias para ir buscar algumas frutas: um balaio cheio de laranjas descansava pachorrento abaixo da barraquinha dos churrascos.  E, mordomia assim seminarista só poderia encontrar no céu, nem precisava descascar, era só estender a mão e sair com a gordinha suculenta espremida na boca. São de gentilezas assim que somos muito gratos à família do Santana.


Numa  decisão  regada  a  cerveja e  pinga da  cabeça     ou 
na cabeça, foram definidos o local, Belém,  e a coordenação
 do VI  Encontro: Nonato(4) e Chicão (5)      na  organização
 em Belém; Tupy(2), na qualidade de nativo,  assessora    na
 definição de roteiro turístico;  Lua  (1) e  Shirley (3) buscam,
junto  às agências de  viagem, um pacote econômico.
Todos fartos e sem remorsos, foi hora de passar para a nossa reunião, onde seria decidido o lugar do próximo encontro. À sugestão da cidade de Belém, colocada desde o encontro anterior, foi contraposta, pelo Benone, um resort em Angra dos Reis, e o Ázara sugeriu que fossemos um pouco mais longe, à Belém de Israel, à Terra Santa. Levantou-se uma discussão pela preocupação com o aspecto financeiro que poderia impedir a presença de alguns, por outro lado, falou-se também que deveríamos nos ater aos lugares que tivessem uma ligação com os easistas, o que descartava Angra dos Reis. Enfim, Belém do Pará foi aprovada quase que por unanimidade, exceto talvez pelo Ázara que votou pela outra.


Tudo resolvido, ainda faltava uma tarefa a executar: as fotografias de despedida à beira do rio, ali mesmo ao fundo da pousada, que levavam também a esperança de uma delas vencer o próximo concurso de fotos.




Elas na foto da despedida à beira do rio Jacaré.



Eles na foto da despedida à beira do rio Jacaré. 


E as despedidas começaram por aqueles que dali mesmo retornariam aos seus lugares, atravessando o espelho de volta ao mundo real. Findas as despedidas e os agradecimentos a todos os familiares do Santana por nos propiciarem tão maravilhosa acolhida, voltamos ao ônibus que nos levaria de volta a Campo Belo. Um pouco mais vazio, o ônibus não manifestava o mesmo entusiasmo que havia na manhã, embora uns tenham puxado algumas músicas.


À noite ainda nos encontramos com alguns easistas na praça em frente à matriz, e depois fomos fazer uma pequena ceia. O Padre Guilherme nos acompanhou junto com o casal Tupy em um fim de encontro leve, amigo e camarada.



Segunda-feira, 23 de setembro.


Descemos para o café-da-manhã e encontramos ainda a turma de Belém, bandeirantes tardios que desbravam este Brasil em busca de nosso ouro: nossa amizade. E que logo partiram em direção ao Pará. Em seguida fomos nós, o último casal dos easistas a deixar o Hotel Champagne, apagando as luzes do nosso V Encontro.
O casal dos easistas que apagou a luz do V Encontro:
Siovani e Rosimere.


Resta-nos agora decidir como chegar ao nosso VI Encontro, mas, parafraseando o Seoldo, o melhor seria pegar uma carona na cauda da estrela que brilha solitária lá no alto do céu da nossa bandeira, que se não é a estrela de Belém, que conduziu os reis magos, é a estrela que nos conduzirá ao Pará, acima da linha do equador, e que atraiu os padres crúzios ao Brasil.




Um trajeto escrito nas estrelas: o mapa da terra e o mapa do céu - curiosa
coincidência (vide texto à direita)
Há uma curiosa coincidência que percebi há alguns anos. Quando eu viajava de Miracema para Campo Belo, eu fazia a viagem em quatro etapas. Saía de Miracema e ia a Leopoldina, onde almoçava e conheci o Seoldo, o Bessa e o Ázara; dali seguia para Juiz de Fora, onde dormia; na manhã seguinte partia para Belo Horizonte, onde, finalmente, pegava o ônibus para Campo Belo. Estas cinco cidades, todas com a presença dos crúzios, formam num mapa as cinco estrelas do Cruzeiro do Sul, Campo Belo lá no alto. Observei ainda que os padres crúzios ou estavam dentro da região do cruzeiro ou nas extremidades do prolongamento do braço da cruz: Rio de Janeiro, pelo lado esquerdo de Juiz de Fora; Belém, pelo lado direito de Belo Horizonte. É por tudo isso que o Hamlet se espantava com os mistérios dos céus.


Até Belém do Pará.

    


              

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Entrevista com Antonius Matheus Reijnen


Perfil


Nascimento:12 mai 1928

Casou-se com Maria do Socorro da Silveira Reijnen (7 set 1942 - 31 Mai 2003)
Professor Toon. Foto de 29 de agosto de 2013
Holandês, veio para o Brasil como padre, tendo atuado em Miracema – RJ, Campo Belo -MG e em Belo Horizonte. Deixou a batina para se casar com Socorro em 1971.
Psicólogo.
Ex-professor do Colégio Dom Cabral – Campo Belo
Ex-professor do Imaco – Belo Horizonte - nas disciplinas de História e Psicologia
Ex-Vice-Diretor da FUNABEM – Fundação Nacional do Bem Estar do Menor
Filhos: Alexandre Matheus da Silveira Reijnen e Renata da Silveira Reijnen.






Apresentação



Fomos novamente a Santa Tereza, em Belo Horizonte, um bairro que deixou sua marca na vida de muitos Easistas. Dessa vez, nosso interesse voltava-se para aquele antigo mestre do Colégio Dom Cabral dos anos 60, que chamávamos de Padre Antônio, mas cujo nome de origem é Antonius Matheus Reijnen e apelido Toon. Ele, já naquele tempo, gostava dos movimentos sociais, da juventude, de ensinar teatro e de viver no meio das pessoas. Fomos, também, movidos por um interesse específico: conseguir dele uma entrevista para o Blog. Já conhecemos um pouco de sua história: veio da Holanda como padre crúzio, no final dos anos 1950;  esteve inicialmente em Miracema, Rio de Janeiro; depois foi para Campo Belo de onde, finalmente, veio para Belo Horizonte; e já no final dos anos 1960, vamos encontrá-lo ajustando o curso de sua vida, largando a batina  e se casando com Socorro.



Comemoração dos 85 anos na Holanda.
Na foto de cima: Alexandre, de cócoras.
Ao fundo, Toon e os amigos.


Depois de muitos anos, queríamos aproximar-nos, ver como ele estava e dar notícias disso aos colegas, encontristas da EASO. Com isso na cabeça, havíamos marcado uma reunião na casa onde moram atualmente os padres Guilherme, Tiago, Teófilo e João Maria. Cumprindo com rigor o horário estabelecido, lá estava ele, às 15:30 hs de um sábado frio.  Viera de carro do Sion para Santa Tereza, nada demais para um psicólogo de 85 anos, que ainda abre a clínica para atender a alguns pacientes, pratica natação no Country Clube e quer trabalhar até quando puder.


Já no início da conversa — não sei se sempre foi tão direto — perguntou-nos: “o que vocês querem comigo, exatamente?”. Uma pergunta à queima-roupa ensejou igual reação: “Simplesmente revê-lo, mas de repente o senhor pode nos conceder uma entrevista para o Blog”, respondemos. Foi assim, tão simples, que conseguimos esta entrevista.


No dia 29 de agosto de 2013, fomos novamente ao seu encontro. Recebeu-nos, então, no salão de festas do prédio onde ele mora. Estava com a filha, Renata, e o neto, Toon, uma criança tipicamente holandesa: cabelos loiros e olhos claros e espertos.  Enquanto testávamos os equipamentos de gravação, o neto brincava com a mãe ali por perto, pois o salão de recepções se liga, no mesmo nível, aos jardins que rodeiam o prédio.


O neto em 2013, com dois anos.

E a entrevista teve início. Toon, o avô coruja, tem a vivacidade de um jovem, a sabedoria de quem vive intensamente e, acima de tudo, é paciente e receptivo. Transmite aquela confiança dos que vivenciam o que falam e falam o que pensam. Durante a entrevista, Toon responde a todas as perguntas, mas não gosta de falar sobre todos os assuntos; parece que a consciência é sua polícia, mas não a subordina ao interesse particular e à precaução pessoal. Quando se nega a um juízo de valor o faz pela própria certeza na limitação ou pela consciência de sua responsabilidade.


À medida que a entrevista vai se deslanchando, suas palavras, seus gestos e suas convicções vão desenhando um homem em que a grandeza se alicerça, exatamente, em não querê-la: não gosta do mito, da ostentação, das alegorias e da valorização do material. Quando fala de Francisco, o Papa, deixa isso bem claro: “gosto dele porque não é um homem do trono”.  


As palavras de Toon, nesta entrevista, mostram o ser humano que vive a plenitude da vida e que busca a felicidade sem a ilusão de que seja completa. Quanto mais avançamos em compreender suas ideias, mais elas se fecham em torno de uma linha de coerências: afinal, como poderia ser completo aquilo que se realiza numa jornada que não termina enquanto se está vivo? Perguntamo-nos.


Esta entrevista nos deixa convencidos de que o mais profundo para as pessoas está sempre no mais simples. Toon nos dá suas referências: a busca da felicidade está no trajeto; os outros devem ser considerados como companheiros de viagem; devemos valorizar o que temos e ter uma esperança.


 O pensamento de Toon certamente esquentará, um pouco mais, o nosso V Encontro. Um homem que vive por inteiro, que tem a coragem de mudar a trajetória de sua vida e moldá-la ao próprio querer,  e que busca a felicidade junto aos outros, não é alguém que se encontre todo dia. Toon não quer ser mito; mas certamente aceitará nosso respeito.


Pelo menos podemos dizer: salve Toon!


Os holandeses talvez digam: sparen Toon! 

  
Perguntas
1.   Editor: como o senhor definiria a vida com base em sua experiência familiar, profissional e religiosa?
Toon: a vida é uma preciosidade. A vida é, no fundo, como a gente a quer. Não pensando em coisa material, mas em relações humanas, a gente é feliz no que a gente quer; a felicidade total não existe, existe o caminho e nele podemos ser felizes. A felicidade está no caminho e não na chegada.
2.   Editor: na sua visão, o que é ter uma vida bem sucedida?
 


O casamento: um dos mo-
 mentos marcantes da vida
 do  entrevistado. 
 Toon e Socorro (Foto de 
 1971)
Toon: é uma pergunta bem difícil porque a vida depende das aspirações de cada um, pois se a pessoa conseguir, parcialmente, realizar o que sonhou, ela é feliz. Digo parcialmente, pois tudo na vida é relativo, a própria vida é relativa; a vida é um caminho; o tempo que a gente vive nesta terra, pensando bem, é pequeno. Nós fazemos parte de uma história e a contribuição para a história depende muito da gente. Eu sou feliz porque consegui realizar o que sonhei, gostei muito das pessoas que encontrei. Eu tenho até hoje muitos amigos em vários lugares deste país e da Holanda.

Padre Agostinho presidiu o 
casamento celebrado por 
Toon e Socorro, em 1971. 
Foto de 2008 (I Encontro da
EASO)
     3.  Editor: numa conversa anterior, quando conversamos lá em Santa Tereza, o senhor me disse, se entendi bem, que o que realmente importa é o relacionamento com as pessoas, é o outro. Eu peguei bem o seu pensamento? O senhor poderia desenvolver um pouco mais essa filosofia de vida?
Toon: o outro para mim é sempre aquele que segue o mesmo caminho que percorro e que, no fundo, tem as mesmas aspirações, ou seja, que quer ser feliz. Onde a pessoa coloca a felicidade, isso é muito relativo; para mim a felicidade é sempre estar satisfeito com o que se tem e ver o outro como colega, participando da mesma vida.



4.   Editor: nós, os Easistas, estamos na faixa dos 56 aos 72 anos; como psicólogo, que conselho o senhor nos daria para que possamos enfrentar bem o processo de envelhecimento?




Toon: ficar satisfeito com o que (se) tem. Pensar com alegria sobre as coisas que já teve e tentar viver em direção a uma esperança. E essa esperança é um reencontro com a nossa origem. Pode-se chamar isso de Deus  (vídeo abaixo).


   
 
5.  Editor: que fatos mais importantes marcaram sua vida?
Toon: na Holanda, primeiro foi a morte de meu pai, ele morreu de pneumonia, naquela época a cura era difícil; depois, a entrada dos alemães na Holanda e, também, a entrada dos ingleses e americanos, não tanto pela alegria, havia medo também. Puseram oitocentos canhões na minha rua. Isso perto da capital da província. Na época era uma pequena aldeia, com 500 a 800 habitantes, hoje deve ter mais de dois milhões. Minha família toda morava lá, éramos agricultores. Eu catei batatas quando menino.

No Brasil, o primeiro fato marcante aconteceu quando eu estava trabalhando em Campo Belo e me avisaram que minha mãe havia morrido. Eu fiz (celebrei) uma missa na igreja de Santa Efigênia, de Campo Belo; fiquei emocionado pelo apoio, principalmente, que a juventude de Campo Belo me deu.
Há muitas coisas que aconteceram no Brasil, mas eu destaco o meu casamento, que aconteceu também no meio de outros fatos, como, por exemplo, a difícil aceitação de meus colegas em relação à minha decisão de largar a batina e me casar; dos estudantes não, estes me apoiaram.

 
6.  Editor: como tem sido sua vida atualmente?
Toon: Boa, eu tenho ainda meia dúzia de pacientes, atendo um ou outro. A maioria da minha idade já nem existe e, dos que estão vivos, a maioria não tem mais atividade.  Eu pretendo assegurar essa minha atividade até quando puder; é bom, é importante, eu me sinto útil e também me sinto obrigado a fazer alguma coisa. Pratico também a natação.

 
7.   Editor: o que o senhor mudaria, em sua vida, se pudesse voltar o tempo e fazer diferente?
Toon: faria tudo do mesmo jeito.

 
8.   Editor: como o senhor vê a chegada do Papa Francisco?


Papa Francisco: "aceitou sua posição,
mas quis ser, realmente, alguém
para o povo".

             Toon: um homem pelo qual eu tenho admiração, gosto da simplicidade dele e ao mesmo tempo do seu idealismo. Afastou o mito (do cargo). Não é aquele tipo de papa distante das pessoas, não é aquele papa do trono. Aceitou a sua posição, mas quis ser, realmente, alguém para o povo. Eu sinto muita simpatia por este papa, é gente normal, pessoa normal!
 
 
9.   Rafael: como o senhor compararia o Brasil de hoje com aquele que existia quando de sua chegada ao Brasil?
      Toon: quando cheguei aqui, o Brasil era um país lá na América do sul, a ideia era assim, um país de índios, eu não tinha muito isso, mas a maioria pensava assim. O brasileiro é fundamental. O brasileiro é muito simpático. Eu encontrei um país a caminho da modernidade, o Brasil não era um paisinho assim... O Brasil é um país muito importante. Um povo alegre, muito diferente daquela visão europeia. Hoje o país melhorou muito, não sei se do ponto de vista humano também. Agora, me chamaram sempre de comunista, eu não gosto muito dos bancos... e agora eu apoio essa política de maior distribuição terras, eu gosto disso aí!

 
10.  Rafael: o Senhor hoje é um crítico da Igreja ou a vê como no caminho certo?
      Toon: a minha pergunta é: o que é a Igreja? A igreja não é aquela organização de Roma, não. A igreja é a presença de Deus, a consciência da presença de Deus no nosso meio, tentando fazer o bem que Deus sempre comunicou (apontou), o outro . Se a Igreja não está no caminho certo, pelo menos ela o procura; se está ou não certa, eu não sou autorizado a falar disso e, também, não gosto de falar disso. Só tem uma coisa que eu gostei: o papa é uma pessoa normal, isso eu gostei.

 
11.  Edgard: hoje, aos 85 anos, quais são suas melhores lembranças da época em que ainda exercia o sacerdócio e fazia parte do austero comando do Seminário de Campo Belo, junto àquela criançada?
Toon, à direita, prepara os jovens  para o teatro. Foto dos anos
1960 quando ele era padre e morava em Campo Belo MG
Toon: os próprios jovens, a amizade deles, que me tratavam de igual para igual. Eu tentei sempre acabar com o mito. O mito não é coisa boa, não. Um grande amigo meu, desse tempo, chama-se Vicente Odair Spindola, que mora atualmente aqui em Belo Horizonte.

 
12. Edgard: que filme passa por sua cabeça ao lembrar-se daquela linda batina branca com uma simpática capa preta e uma faixa, também preta, ostentando no peito a cruz vermelha, fazendo sermões nas festas de Semana Santa e em outras oportunidades?
Toon: a pergunta é muito comprida... eu não gostava muito daquela batina. Pra mim é coisa da idade média. O tempo mudou demais... o mundo  mudou. Não me lembro muito dos sermões. Muitos falavam que eu era meio comunista. A culpa (rsrsrs) de eu ter ido para Campo Belo foi do padre Justino Ele sabia que eu gostava dessas atividades com os  jovens e me convidou para ir para Campo Belo. Antes disso, eu estava em Miracema.

 
13  Edgard: tenho uma grande curiosidade: lembro-me claramente de seu emocionante discurso na Igreja Matriz de Campo Belo, em 1962, durante a comemoração do Dia das Mães, quando quase todos choraram. O senhor ainda se lembra disso?
Toon: eu não me lembro desses discursos. Eu falava o que sentia e pensava, e nem sei se os outros gostavam.
 
 
14. Edgard (Pergunta para a filha Renata):como você define seu pai?
Festa de aniversário das crianças. Foto dos anos 1980.
Na frente, Alexandre e Renata. Atrás, Socorro e Toon
Renata: ai meu Deus do céu!  (Toon: “eu não posso nem escutar” (rsrsrs) É, pois é, meu pai não pode escutar.  Eu o acho uma pessoa corajosa. Vir ao Brasil, largar a batina. Ele tem uma certa cultura; se adaptou ao Brasil, virou mais brasileiro que holandês. Um homem com sabedoria de vida, teimoso e sempre soube e sabe o que quer, mas tenta não desagradar a ninguém. É um bom pai, foi um bom marido. Uma pessoa extremamente independente que soube se virar na vida mesmo passando por situações muito difíceis.


 
15.     Marcos Rocha: qual a sua opinião sobre o celibato exigido pela Igreja Católica de todos os padres e, como desdobramento desta questão, o que o senhor pensa sobre o posicionamento da Igreja em relação ao papel que poderiam ter os ex-padres (que optaram pelo casamento, como é o seu caso) no atual momento do catolicismo? Pois é sabido que as vocações sacerdotais têm diminuído em todo o mundo e, portanto, faltam tantos padres em praticamente em todos os países do mundo...
Renata e o filho Toon, em  Arnhem,
 Holanda, onde morou com o marido
por 3 anos.
Toon: o mundo está em crise, nós estamos numa mudança de época, mudança de mentalidade. Como vai ser, ninguém sabe porque precisaria ser um profeta, mas que o mundo está em mudança nós sabemos que está. Não é só o Brasil, a Holanda e sei lá onde mais, agora é o mundo, um pouquinho oriental e ocidental, ... vamos ver como vai ser isso. Um país curioso é a Rússia, um lado ocidental, mas o outro lado muito oriental. Mas aquele presidente da Rússia, cala a boca! (Risos)
Neste contexto e voltando à pergunta: o celibato eu acho uma coisa boa, mas o celibato obrigatório, ligado a uma vocação, eu não acho certo, não. Agora, o celibato por opção livre da pessoa, aí sim. Quanto aos ex-padres serem convidados para atuar na igreja, não sei se seria uma boa coisa. Nem sei se seriam bem aceitos e também nem sei se eu mesmo seria bem aceito. Não sei qual seria a reação. Nunca pensei nisso.

 
16.     Marcos Rocha: ainda como desdobramento da pergunta anterior, o que o senhor pensa sobre os escândalos que têm surgido em vários países (EUA, Irlanda, Portugal, também aqui no Brasil e até no Vaticano!) sobre pedofilia e homossexualismo praticados por padres. O Sr. vê alguma correlação entre esses desvios de conduta de padres e até bispos católicos e a exigência ou obrigação do celibato?"
Toon: com relação ao celibato poderia ter alguma correlação.  Como já disse, o celibato obrigatório não é uma boa coisa.

 
17.     Santana: nos anos sessenta, o senhor nos incentivou muito ao gosto pelo teatro e pelas representações cênicas, gostaríamos de saber se, posteriormente em sua vida profissional, o senhor organizou peças teatrais ou se envolveu em outras atividades artísticas?"
Foto dos anos 1980. A partir da esquerda:
Alexandre, Renata, Mônica, Socorro e Toon.
Toon: não, eu tinha que trabalhar. Não tinha mais tempo para teatro. Eu sempre apoiei o pessoal que mexia com artes, mas eu mesmo não tinha tempo; tinha dois filhos pra criar... dava aulas de psicologia e história. Fui professor do IMACO. O diretor do IMACO, Raul Murad, era muito meu amigo. Por aquele diretor eu tenho a maior admiração, muito correto.  
 
 
18.     Seoldo: a gente cria raízes novas, adapta-se e tudo... Mas as raízes velhas cobram um preço alto pelo transplante. Como você se sentiu/sente como um imigrante holandês no Brasil? Saudades da Holanda? (Em geral, imigrantes sofrem bastante).

Toon: não, eu me senti muito bem aqui desde o início. Eu aprendi uma coisa que uma pessoa falou para mim, não sei mais quem, mas é o seguinte: quando você vai ao outro lado, você tem que olhar. Então, quando vim para o Brasil, eu olhei, não tinha uma ideia moralista do certo ou errado.

 
19.     Seoldo: nosso grupo de conscientização lá do Bairro Santa Tereza -BH (do qual você foi o guia/líder e Socorro uma ativa participante) parece que, de uma maneira ou de outra, empurrou-me para ir trabalhar na Colônia Pindorama - AL, um projeto de reforma agrária tipicamente de cunho socialista - participação no trabalho e no ganho. O que aconteceu com aquele grupo depois de 1968?
Toon: o grupo se dispersou pouco tempo depois de 1968. Ali pelos anos 70, se não me falha a memória, eu larguei a batina. Casei-me em 1971, e o grupo deixou de existir.

 
20.     Seoldo: creio que sua decisao de deixar o sacerdócio foi dura, penosa... porém, corajosa. Admiro muito sua arrancada e a opção de formar uma família com Socorro. Aonde vocês foram passar a lua de mel?
Toon:  no Rio de Janeiro.  

         Outras fotos do entrevistado
O neto, o xodó.

Renata e o marido, Hans.