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segunda-feira, 3 de março de 2014

O Meu Amigo da América

O Meu Amigo da América


por Siovani

I

No silêncio da noite cruzou o rastro negro de uma sombra que falava entre dentes: quem não tem memória própria se vale e capenga com a memória alheia. E gargalhava, e repetia aquilo incessantemente. Um espírito incorporado em um facho de luz projetava nas faldas da montanha um atropelo de imagens acumuladas por um século.

Um raio de luz brilhou na profunda noite e o espectro de Black Elk desceu a encosta de pedra até o leito seco do rio, expulsando as brumas dos maus espíritos. Sentando-se, cerimoniosamente acendeu o sagrado cachimbo da sua tribo. Antes de fumarmos, saudou os quatro ventos: uma longa reverência para o Norte, outra ao Leste, girando mais um quarto reverenciou o Sul, mais outro quarto, o Oeste, e retornando ao Norte disse: "Esses quatro espíritos, afinal, são apenas um, e esta pena de águia é para este Um, que é como um pai, e é também para os pensamentos dos homens, que devem se elevar tão alto quanto as águias o fazem." Assim falou Black Elk e deixou-se em silêncio.



O espírito do velho xamã, tomando-me as mãos, levou-me em uma viagem alucinada para as areias do deserto. Sem dizer nada mais deixou-me, esgotado e aflito ao lado de uma cascavel, que chocalhava com persistente ameaça. Dos olhos da serpente, que me fitavam em fogo, partiram dois fachos de luz, que, chocando-se violentamente contra o meu peito, projetaram-me como uma flecha sob os frágeis raios do sol que surgia. Como o avião que se lançava contra o carro de Daria naquela estrada infinita que atravessava o deserto em Zabriskie Point, voei também sobre a facha branca que dividia a estrada sem carro e sem Daria. Caí no meio daquela imensidão com a garganta árida, procurando nas quatro direções o vento que me aliviaria, mas o único murmúrio era o crepitar da areia. Depois, nada mais que o negrume da inconsciência.

Acordei com o insistente barulho de cascos de cavalos a galope. Minha primeira visão foram os gigantes de pedra que se erguiam na paisagem silenciosa pela janela da diligência que
cruzava o Monument Valley. Sentado no chão de madeira, Ringo Kid olhava-me com um leve sorriso de zombaria nos lábios, um sorriso que me lembrava John Wayne sacolejando em Stagecoach. O tropel dos cavalos se intensificou quando o bando de apaches de Gerônimo perseguiu a diligência, e, súbito, uma dor atroz jogou-me para fora entre as patas dos cavalos índios disparados: uma flecha apache atravessara-me o ombro.

Os roncos de duas motocicletas acharam-me perdido na estrada ao pôr do sol. Perguntaram-me de onde vinha, eu só pude responder: é difícil dizê-lo, acho que meu povo está enterrado sob a terra em vossos pés. Montei na garupa de Peter Fonda e viajamos Sem Destino até o tombar da noite, quando paramos e iniciamos uma outra viagem de vertigens. Ao raiar do sol estava sozinho novamente nas Chiricahua Mountains.

Estava agora vagando na teia de Broken Arrow assistindo a cerimônia apache de casamento. O xamã faz uma incisão na mão esquerda de Sonseeahray e na direita de Jeffords, une as duas feridas com um laço: "Não haverá mais chuva para vocês, pois serão o abrigo um do outro; não haverá mais frio, pois darão calor um ao outro; não haverá mais solidão, nunca mais haverá solidão, são dois corpos, mas neles corre um mesmo sangue. Vão, guiem os seus cavalos brancos para seu lugar sagrado de amor."

Quando a consciência recobrou-me o controle, nada mais me dizia se tudo aquilo acontecera ou se havia sido o delírio de uma mente sem memória, mas em minha mão repousava uma pena de águia.




II


Quando eu era criança pequena lá em Miracema, ouvia falar daquela terra que ficava logo ali, além da divisa, embora nem imaginasse o que fosse a tal divisa. E aquela terra que ficava a um beiço dali, chamavam simplesmente de Minas. Via o ônibus passar por ali, bem na frente de casa, levando pessoas que queriam ir para aquelas Minas: para Palma, Laranjal, Leopoldina e Cataguases, itinerário do ônibus, cidades, que logo aprendi, ficavam do outro lado da divisa.

E foram muitos os ônibus que cruzaram aquelas ruas empoeiradas antes que um dia eu também pegasse aquela estrada para adentrar Minas, para cruzar o coração daquela terra desconhecida e aprender, na prática, que aquilo que eu já então via nos mapas era muito mais longe que a imaginação. E lá bem longe, cruzando dos pés ao peito de Minas, léguas perdidas de tempo e estrada, cheguei em Campo Belo.

Em Campo Belo eu aprendi que eu era um papa-goiaba, para a minha não surpresa, pois me era algo muito natural, já que crescera no meio de um quintal infestado por goiabeiras de todos os tipos, de goiabas doces e suculentas, goiabas-pera, goiabas brancas, goiabas vermelhas, que lá pelas Minas só existiam em arremedo, bichadas, areentas e sem sabor. Goiabas que jogávamos nos tachos duas a três vezes por semana, no verão, para ficar fugindo dos espirros que queimavam como brasa até que o caldo grosso virasse a massa de saborosa goiabada, que hoje em dia, saudoso, procuro sem encontrar o sabor.

E lá naquela terra tão perto de Minas, e tão longe devido a minha condição de criança, ainda ouvia que lá em Minas também existia uma cidade de doidos, chamada Barbacena, para onde os doidos de cá eram levados, e para lá nos ameaçavam levar quando fazíamos alguma doideira! E corria pelas bocas satisfeitas do bom dito que o lugar não era para os mineiros, pois "mineiro não fica doido, piora!"

Naquelas viagens, no espaço entre dois ônibus, parava em Leopoldina para almoçar, e foi lá que conheci um ser estranho, estranho para mim, pois muito comum naquelas paragens, um mineiro. Algo havia de ameaçador naquele epíteto, pois ouvia falar de um tal Mineirinho, bandido famoso que aterrorizava o Rio de Janeiro naqueles tempos. Mas esse mineiro que conheci não metia medo, do alto do seu sorriso franco e gozador mais parecia o Mineirinho do Ziraldo, o Comequieto!

Dizem que criança quando cresce é como passarinho, tem que voar para outras paragens para construir o seu ninho, mas esse mineiro, da inusitada alcunha Geraldo Seoldo, não era um simples passarinho, era uma ave migratória de asas potentes, sem medo da Águia, que não se contentou com sua terra para tecer o seu berço e foi arribar em terras longínquas. Para não deixar a saudade bater com muita força, deixa as montanhas para trás e nidifica nas areias de um deserto, onde sua mineirice dá faniquitos de saudades de quando em quando e arremete-o nas lembranças:

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.
(Cidadezinha Qualquer - Carlos Drummond de Andrade).


Há momentos em que penso que ele foi atraído por aquela vastidão de areia porque a sua alma mineira chorava de solidão pela ausência do mar, e aquela praia sem fim refletia a miragem do seu sonho. Por outro lado, em outros momentos, penso ter sido um ato de extrema sabedoria, pois "a única verdadeira sabedoria vive longe da espécie humana, lá fora, na grande vastidão, e só pode ser atingida através do sofrimento; só a privação e o sofrimento abrem o entendimento para tudo o mais que se esconde" (Igjugarjuk - xamã de uma tribo esquimó caribou - citado por Joseph Campbell em O Poder do Mito).

Mas não há águia que possa carregar em suas asas a saudade de um mineiro, as lembranças a ativam e o trazem de volta para sua gente perdida entre as serras das Gerais. Aqui encontra seus antigos camaradas num abraçar único de cinquenta anos de ausência, pois:

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
...

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele. (Alberto Caeiro)

III

- Mas por que você diz que não te querem lá?

- Porque eles exigem que eu lhes peça autorização para lá entrar, e põem empecilhos para minha viagem, prefiro ir para lugares que nada me exigem.

Foi em uma conversa assim que a Judite, esposa do Mineirinho, agarrada lá naquelas terras com laço de sangue, tentava quebrar a minha arredia intolerância em visitar a terra da águia. E também faltava livrar-me do pavor que aquele dinheiro miúdo deles transmite com aquele olho escancarado que tudo vê e tudo vigia.

O tempo foi cuidando de quebrar as barreiras, até que em uma conversa pelo Skype ruíram todas as objeções. Mineiro adotado que sou, piorei! Já atiçado pelas memórias das fitas americanas que mostravam aquelas paisagens estonteantes, concordei em irmos a Tucson, eu e a Rose. Já estamos preparando a mala para partir no dia 09 de abril e permanecer com Seoldo e Judite por dez dias da primavera.

Se tiverem algum mimo que possamos levar para o casal, façam-no chegar até aqui, desde que não seja um queijo minas, pois a imigração decerto o localizaria pelo cheiro sem mesmo abrir a mala, e que não seja muito pesado, pois minhas costas precisam ser preservadas para a longa viagem.


***


Obras citadas neste texto (em ordem de citação):

1. Black Elk Speaks – livro de 1932 do poeta e escritor americano John G. Neihardt, que narra a história e a espiritualidade de Black Elk, um curandeiro da tribo Oglala Lakota (Sioux).

2. Zabriskie Point – filme de 1970, dirigido por Michelangelo Antonioni.

3. Stagecoach – no Brasil, No Tempo das Diligências – filme de 1939, dirigido por John Ford, com John Waine interpretando Ringo Kid.

4. Easy Rider – no Brasil, Sem Destino – filme de 1969, dirigido por Dennis Hopper, com Peter Fonda, Dennis Hopper e Jack Nicholson.

5. Broken Arrow – no Brasil, Flechas de Fogo – filme de 1950, dirigido por Delmer Daves, com James Stewart e Jeff Chandler.

6. Mineirinho, o Comequieto – personagem de cartuns de Ziraldo, publicado originalmente na revista O Cruzeiro.

7. Cidadezinha Qualquer – poema de Carlos Drummond de Andrade, do livro Alguma poesia de 1930.

8. The Power of Myth – no Brasil, O Poder do Mito – livro de 1988 que transcreve entrevista entre Bill Moyers e Joseph Campbell.

9. O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia – poema de Fernando Pessoa, publicado pelo seu heterônimo Alberto Caeiro em O Guardador de Rebanhos.