quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Para apresentar a Senhora Dona Menina


Lisboa            

Por Siovani 


Quer tenha sido nas salas do Colégio Dom Cabral, ou mesmo antes, nas salas mais crianças do primário, o menino se revoltava com tantos nomes e datas que lhe cobravam saber. Se as naves de Cabral, sem lemes, fizeram uma travessia de quinhentos anos, a minha viagem, há pouco iniciada, também seguiria o rumo do vento. E os personagens navegavam sobre uma fina tela tecida de grãos de poeira efêmera: eram reis e governadores, eram senhores das capitanias ou escravos heróis, eram holandeses invadindo e holandeses expulsos, eram Cabanadas, Sabinadas, inconfidentes, e o intrépido Arariboia, que lutou com os franceses, atravessou a baía e criou Niterói. Uma salada que se comia crua para fazer uma prova e que no dia seguinte se esvaía pelas latrinas. Depois, a cabeça leve novamente já nada guardava dos episódios, até que outra prova fizesse tudo se acotovelar novamente nos dois neurônios que se precisava usar. E era assim que a história funcionava, tal qual o enredo da escola de samba que o Ponte Preta criou.



 Foram necessários alguns anos de amadurecimento para o menino perceber que deveria ter aprendido a cortar a salada mantendo os ingredientes separados, deixando para juntá-los quando o molho estivesse pronto para ser devidamente apreciado. E o sabor da história foi se tornando cada vez mais necessário enquanto ele estudava a matemática e a engenharia. Forçado a dele se afastar, mais sua fome se fazia sentir.

E começaram as fugas para o passado na história, lida sempre como se fosse um romance. Como aperitivo, a nossa história: em alguns momentos, uns tantos vilipêndios, que a minha cara esquerda aplaudia no ranço deixado pela ditadura; em outros momentos, Gilberto Freire, Celso Furtado, Hélio Silva, a descoberta de um outro país. Depois, nos livros de Michelet, o encontro de enredos muito mais excitantes do que a ficção pode inventar, e desses, retirar a gana para aprender o francês lendo livros de história da França: Clóvis, Carlos Magno, Joana D´Arc, Luís XIV, a Revolução, Bonaparte, a Comuna, a humilhação infligida aos alemães que permitiu erigir um monstro que ameaçou a Europa.    

E um dia você se surpreende na margem do Tejo. A Torre de Belém, agora não mais uma ilha, se ergue a sua frente como um colosso feito da matéria do tempo. Do seu topo, Dom Henrique vigia a boca do rio que se abre para o Atlântico de tantas conquistas. Ao seu lado você vê passar o Vasco da Gama carregando o globo terrestre enquanto o povo ridiculariza-o. Sem as amarras do tempo, Cabral segue seu destino traçado para Vera Cruz. Ele me soprou, acabando com a polêmica, que foi um milagre da Virgem, que queria uma casa em Aparecida. Bartolomeu Dias ainda não sabe que as Tormentas iriam dobrá-lo. Fernão de Magalhães, que se dali não partiu, por ali ficou junto aos seus, gira ao meu redor mil vezes, pois o meu mundo, acalentado por quinhentos anos, é muito mais vasto para sua nau desbravar, e Dona Carlota Joaquina reclama com Dom João, que a arrasta para a terra dos bugres com os soldados franceses nos calcanhares. Tantos fantasmas naufragados nas águas de um povo, que ainda espera pela volta do seu Rei, Dom Sebastião, que levará Portugal novamente ao cume do mundo, como é o seu destino nos sonhos de Vieira.

Nas ladeiras de Alfama um bonde sobe carregando portugueses de setecentos anos. Paro na curva da Sé. Na catedral entro ávido por Santo Antônio, pergunto à senhora dos ingressos onde fica a cruz que ele traçou na pedra, e ela respondeu-me mais ou menos assim: a cruz fica ali naquela escadaria; foi o primeiro milagre dele. Saio sorrindo, o orgulho que havia em sua voz fez-me o sorriso. O Santo é português, mas fez seus milagres na Itália. Ora, pois então não se podia agir diferente, penso eu com um grau de maldade acentuada, arruma-se um milagre em Portugal. Conhecem a história? Pois é mais ou menos esta: Santo Antônio foi criado ali em frente à Sé, e conta-se que em uma noite estava sozinho na capela e foi atacado pelo demônio em pessoa; Fernando, que ainda não era Antônio, pois era esse seu nome de batismo, fugiu para a escadaria do coro e, para se defender, traçou com o dedo na parede de pedra uma cruz que ficou gravada para a eternidade nos sulcos deixados na pedra, que não são superficiais, são profundos, como os que se faz no barro ao pressionar o dedo. 

As ruas já não mostravam seu ar a quase ninguém, escuras e vazias nas imediações do hotel. O dia tinha sido de maravilhas e cansaço, mas ainda não estávamos saciados pelas belezas de Lisboa. Queríamos mais. Queríamos uma pequena ceia que nos trouxesse novamente o doce cheiro do azeite sobre talvez... qualquer coisa portuguesa. Mas parecia que ficaríamos frustrados, pois tudo estava fechado, era uma noite de domingo e aquela freguesia não era propriamente um lugar de boêmia.

Encontramos apenas um pequeno boteco, uma única porta com uns minguados três fregueses, que mesmo assim eram quase suficientes para encher o local. No balcão um casal atendia e, ainda, uma menina adolescente, o que dava ao lugar um aspecto bastante familiar. Como nos informaram que podiam servir-nos algum sanduíche, acomodamo-nos à espera. E foi como se brilhasse, inusitadamente, a varinha mágica de uma fada travessa. 

Senti-me aos poucos entrando nas páginas de um livro do Eça ou do Camilo, ao poder ser o auditório para as conversas que rolavam. Deliciei-me avaramente com a conversa que um senhor, já com os seus cabelos brancos, entretinha com o casal e com a menina. Ele já consumira um tanto mais que o devido de bagaceira, a fala já um pouco alterada, mas mostrava ser freguês velho conhecido do casal. Não me recordo mais do teor da conversa, mas quando o senhor se dirigia à menina, com seu sotaque português característico e carregado pelos vapores espirituosos, dava-lhe, algo que soava tanto cavalheiresco quanto anacrônico, o tratamento de Senhora Dona Menina. E toda vez que se dirigia à rapariga parecia que uma mariposa lhe saía da boca, girava em torno à luz-menina e voltava a ser deglutida, para novamente recomeçar, girando ao redor da menina. E ele soltava a mariposa insensatas vezes, para o meu maior contentamento.

Antes mesmo de terminarmos nossa refeição, ele se despediu e saiu um tanto cambaleante pela noite de Lisboa. Eu também de lá saí recompensado por haver vivido um pequeno pedaço típico da cidade, do povo, do português vivo em seu ambiente mais revelador. Surpresa melhor seria apenas se o possível fantasma de Fernando Pessoa estivesse ali, naquele boteco, sentado a escrever como no quadro de Almada Negreiros, sobre aquela página em que eu podia ser um apagado personagem.

E foi por efeito do meu deslumbramento nessa noite que dei o nome da mariposa a um personagem que criei, Senhora Dona Menina, mas esta, só é uma menina pela vivacidade de espírito, pois os anos já lhe deram alguns netos. Dona Menina, que espero poder lhes apresentar, é uma senhora muito religiosa, mas de uma religiosidade sem beatices, livre de amarras dogmáticas. Católica Apostólica Romana, como faz questão de salientar, vive às turras com o vigário do lugar. Ela encarna a sabedoria típica do nosso povo do interior, e talvez mesmo, daquele povo ancestral antigo que nos legou Cabral.

 Lisboa me deixou um presente e a ternura que lhe tenho enche meus dias de saudades.



2 comentários:

  1. Bom dia Siovani! Vim conhecer o blog, gostei da crônica, viajei um pouquinho para Lisboa com ela.
    Sempre que tiver por aqui, vou dar uma passadinha por aqui, tá.

    Um abraço

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  2. Fiquei muito, muito impressionado com o texto. De repente eu, que nunca tinha pensado no assunto, sentí uma enorme vontade de conhecer Lisboa. Valeu Siovani ! Voce é mesmo um craque.
    Abraços - Benone

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