Conforme prometido, apresento alguns “causos” referentes à nossa convivência com os digníssimos Padres Crúzios.
Para início de conversa, todos sabem que sou paraense, de Belém do Pará. Nasci lá no distante dia 28 de junho de 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, e fui criado no bairro da Pedreira. Talvez tenha sido essa origem a sina que estava escrita nas estrelas e que me acompanharia até os dias atuais, pois minha vida pode ser considerada, ao longo de todos esses anos, uma verdadeira pedreira...
Auto-ironias e gozações à parte, fui batizado na Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, hoje Santuário, onde, no segundo domingo de outubro, é realizada aquela tradicional Procissão do Círio de Nazaré, que os noticiários de televisão dizem reunir mais de dois milhões de pessoas todos os anos. Por que fui batizado lá? Bem ... Porque meu pai não “topava” muito com uns certos missionários que, não por acaso, eram Padres Crúzios da paróquia da Pedreira, que pregavam uma profunda conversão de costumes próprios da região e combatiam a forma como os partidos e governantes da época atuavam: PSD e UDN.
Minha mãe, ao contrário do meu pai, era muito religiosa. Assim, ela nos enviava ao Catecismo Paroquial. Lá, vim a me relacionar com os Padres Crúzios, que eram os responsáveis pela Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Dois grandes missionários Crúzios atuavam por lá: Padre Henrique Plag e Padre Hilário de Yong. A casa deles era na Rua Barão do Triunfo, bairro do Marco, uma longa distância até a paróquia. Faziam o percurso de bicicleta ou de ciclomotor (aquele tipo de bicicleta movida por um motorzinho barulhento, doado por seu país de origem).
Esses padres, quando vinham para o Brasil, atravessavam o Atlântico de navio, eram viagens de 15 dias ou mais. Não falavam português. A comunicação era difícil, daí a razão de alguns dos “causos”.
Provenientes de região muito fria, podemos calcular como sofriam com o calor do Rio de janeiro e do Pará. Usavam batina branca, cíngulo preto, escapulário preto com a cruz pregada no peito e uma capinha também preta sobre os ombros (símbolo da dignidade de Cônegos Regulares). É assim até hoje.
Para fugir ao calor quase insuportável, usavam camisetas, cuecas e meias brancas longas, que iam até o joelho. Desta forma, sentiam-se melhor protegidos do calor. Poucas vezes usavam suas pesadas calças.
Aqui começam alguns “causos” que, se alguém duvidar, poderão ser confirmados pelos remanescentes Crúzios e por outras testemunhas oculares das estórias, que ainda estão por aí.
O bairro da Pedreira era, naquela época, uma área sem nenhuma estrutura de saneamento. Havia poucas ruas calçadas, muitos brejos, muita lama. Água para beber, só de cisternas (poços). A existência de pinguelas era a tônica. Usavam-se tábuas e toras de açaizeiros para servir de precárias pontes.
Aqui vai o primeiro “causo”. Um belo dia, um dos padres, pilotando sua bicicleta sobre essas “pontes”, caiu dentro do lamaçal. Imaginem a cena! Barro e lama para tudo quanto é lado. A bicicleta foi literalmente para o brejo. A batina subiu até à cintura. Reação de uma das crianças: - “Manhê! O padre usa calcinha igual a da vovó, branca e graaande”.
Uma outra vez, também na Pedreira, lá ia o padre pedalando airosamente a sua “magrela”. Uma ponta da barra da batina entrou na catraca do veículo. Ooops! Ao se assustar, o padre puxou o guidão para o alto e, obviamente, estatelou-se no chão, caindo ao lado da bicicleta, de peito para cima. Parecia uma cena extraída dos pastelões do cinema mudo que assistíamos nas matinês de domingo: batina pra cima, meias compridas e o famoso cuecão aparecendo. Os que presenciaram a cena ficaram preocupados e logo procuraram socorrer nosso querido missionário. Mas não deixaram de dar boas gargalhadas. E o padre ficou mais vermelho que um tomate, ainda meio desorientado, que nem um cachorro que cai do caminhão de mudança...
O trabalho missionário dos Crúzios em minha Paróquia , a de Nossa Senhora Aparecida, era intenso. Além da Catequese Infantil, Coroinhas, Cruzada Eucarística, Escoteiros e tantos outros, tínhamos um magnífico coral e um grupo de teatro que apresentava as “pastorinhas” e peças educativas. O palco era de madeira e as cadeiras da platéia, dessas antigas de metal, utilizadas nos botecos. Vejam o que aconteceu numa das nossas apresentações.
O superior maior dos Crúzios no Brasil, que era o Pró-Provincial, estava em visita pastoral em Belém. Homenagem para ele na Pedreira. Padre grandão, forte e volumoso. Sentou-se na primeira fila. Ficou maravilhado por ver na terra dos tupiniquins artistas natos. Em determinado momento, entusiasmado, levantou-se, virou-se para a platéia, pediu aplausos para nossos artistas e, com certa rapidez, buscou sentar-se. A cadeira não resistiu ao seu peso e cedeu. Foi ao chão. “Ooohhhh!”, foi o murmúrio geral que percorreu o auditório. Todos ficaram preocupados, mas não deixaram de rir com a cena: costas no chão, pernas pra cima e o resto podem imaginar. Foi uma loucura...
Dois padres Crúzios, recém chegados da Holanda, vieram para Belo Horizonte. Não falavam bem nossa língua, mas aventuraram-se a sair pelas lojas para fazer compras. Um dia, ao entrar em uma loja, chamaram o balconista e pediram: “Nós querer comprar calcinhas”. O rapaz novo, meio inexperiente, procurou a gerente dizendo que uns padres esquisitos (dado as vestes dos Crúzios) estão querendo comprar calcinhas. “Que sem-vergonhice!”
Lá se foi a gerente socorrer a emergência. E os dois padres, com toda a paciência, explicaram: “Nós querer comprar calcinhas”. Ela também ficou sem jeito, mas foi ao mostruário e apresentou a eles as mais diversas formas de calcinhas femininas, inclusive alguns modelos bastante sensuais. Eles se assustaram. “Nô, nô, não ser isso”. A moça, com muita paciência, disse só ter aquelas. Um deles, então, nitidamente nervoso, gesticulando muito, afastou-se do balcão e mostrou com gestos que era para eles usarem. “Ah! Agora sim”, suspirou a gerente e foi a uma outra prateleira e trouxe as “calcinhas” que os dois padres desejavam. Eles saíram felizes com duas dúzias de cuecas, daquelas velhas e confortáveis no estilo samba-canção. Ufa!
Somente em 1963, no dia 14 de fevereiro, cheguei a Campo Belo. E, a partir de então, comecei a tomar conhecimento de outras estórias interessantes. Casa dos Padres Crúzios, professores e párocos, na nossa querida “cidade montesa, como igual não há outra na Terra” (vocês ainda se lembram do hino de Campo Belo, não?). Os Crúzios sempre davam assistência às cidade vizinhas. Lá se foi um dos novatos ajudar na Semana Santa na “progressista” cidade de Cana Verde. Praça cheia de fiéis para a pregação do Encontro. Todo paramentado e procurando dar uma grande ênfase, microfone na mão, alto-falante na torre da Igreja e em volta da praça, assim começa nosso pregador: “POVO DE CANA BELA”. Risos e vaias generalizados em plena cerimônia da Semana Santa. Esse povo não tem jeito, mesmo! Vaia até minuto de silêncio nos estádios de futebol, vocês acham que iria perdoar o nosso distraído padre Crúzio?
E olha que nem chegou a ser um vexame tão famoso como aquela gafe do presidente norte-americano Ronald Reagan quando, em visita oficial ao Brasil, em 1982, ao lado do sizudo general João Figueiredo, discursou solenemente: “Gostaria de partilhar o sonho americano com o povo da... Bolívia!” (Este, sim, merecia ser vaiado estrepitosamente. E, no entanto, não o foi).
Um outro padre, mais entusiasmado ainda, também na Procissão do Encontro, desta vez em Leopoldina. De um lado, a imagem de Nossa Senhora das Dores; de outro, a imagem do Cristo carregando a sua cruz. Nosso pregador faz uma bela apresentação do tema e depois volta-se para imagem de Nossa Senhora: “Olhem, meus queridos irmãos, quem vem lá? É a Mãe do Filho. Dolorosa, lacrimosa com espadas ‘espetando’ seu coração”. O povo se voltou e ficou entristecido. “Agora, olhem lá”. Todos se voltam para o outro lado da praça. “Quem vem lá? Coroa de espinhos na cabeça, sangue escorrendo pelo rosto, quase não suportando o peso da cruz. É ele, meus irmãos, o Cristo sofrendo por nossos pecados. Vejam, lá vem ele: o Filho da Mãe!”. Risada geral na praça condoída.
Quem, nessas épocas, conviveu com nossos queridos Crúzios em Belô, em Campo Belo ou Leopoldina sabe que não estou mentindo. Já quanto às cenas de comédia de pastelão de Belém, algumas delas eu mesmo presenciei.
Até a próxima!
CE/MAR