O Meu Amigo da América
por Siovani
I
No
silêncio da noite cruzou o rastro negro de uma sombra que falava
entre dentes: quem não tem memória própria se vale e capenga com a
memória alheia. E gargalhava, e repetia aquilo incessantemente. Um
espírito incorporado em um facho de luz projetava nas faldas da
montanha um atropelo de imagens acumuladas por um século.
Um
raio de luz brilhou na profunda noite e o espectro de Black Elk
desceu a encosta de pedra até o leito seco do rio, expulsando as
brumas dos maus espíritos. Sentando-se, cerimoniosamente acendeu o
sagrado cachimbo da sua tribo. Antes de fumarmos, saudou os quatro
ventos: uma longa reverência para o Norte, outra ao Leste, girando
mais um quarto reverenciou o Sul, mais outro quarto, o Oeste, e
retornando ao Norte disse: "Esses quatro espíritos, afinal, são
apenas um, e esta pena de águia é para este Um, que é como um pai,
e é também para os pensamentos dos homens, que devem se elevar tão
alto quanto as águias o fazem." Assim falou Black Elk e
deixou-se em silêncio.
O
espírito do velho xamã, tomando-me as mãos, levou-me em uma viagem
alucinada para as areias do deserto.
Sem dizer nada
mais deixou-me, esgotado e aflito ao lado de uma cascavel, que
chocalhava com persistente ameaça. Dos olhos da serpente, que me
fitavam em fogo, partiram dois fachos de luz, que, chocando-se
violentamente contra o meu peito, projetaram-me como uma flecha sob
os frágeis raios do sol que surgia. Como o avião que se lançava
contra o carro de Daria naquela estrada infinita que atravessava o
deserto em Zabriskie Point, voei também sobre a facha branca que
dividia a estrada sem carro e sem Daria. Caí no meio daquela
imensidão com a garganta árida, procurando nas quatro direções o
vento que me aliviaria, mas o único murmúrio era o crepitar da
areia. Depois, nada mais que o negrume da inconsciência.
Acordei
com o insistente barulho de cascos de cavalos a galope. Minha
primeira visão foram os gigantes de pedra que se erguiam na paisagem
silenciosa pela janela da diligência que
cruzava o Monument Valley.
Sentado no chão de madeira, Ringo Kid olhava-me com um leve sorriso
de zombaria nos lábios, um sorriso que me lembrava John Wayne
sacolejando em Stagecoach. O tropel dos cavalos se intensificou
quando o bando de apaches de Gerônimo perseguiu a diligência, e,
súbito, uma dor atroz jogou-me para fora entre as patas dos cavalos
índios disparados: uma flecha apache atravessara-me o ombro.
Os
roncos de duas motocicletas acharam-me perdido na estrada ao pôr do
sol. Perguntaram-me de onde vinha, eu só pude responder: é difícil
dizê-lo, acho que meu povo está enterrado sob a terra em vossos
pés. Montei na garupa de Peter Fonda e viajamos Sem Destino até o
tombar da noite, quando paramos e iniciamos uma outra viagem de
vertigens. Ao raiar do sol estava sozinho novamente nas Chiricahua
Mountains.
Estava
agora vagando na teia de Broken Arrow assistindo a cerimônia apache
de casamento. O xamã faz uma incisão na mão esquerda de
Sonseeahray e na direita de Jeffords, une as duas feridas com um
laço: "Não haverá mais chuva para vocês, pois serão o
abrigo um do outro; não haverá mais frio, pois darão calor um ao
outro; não haverá mais solidão, nunca mais haverá solidão, são
dois corpos, mas neles corre um mesmo sangue. Vão, guiem os seus
cavalos brancos para seu lugar sagrado de amor."
Quando
a consciência recobrou-me o controle, nada mais me dizia se tudo
aquilo acontecera ou se havia sido o delírio de uma mente sem
memória, mas em minha mão repousava uma pena de águia.
II
Quando
eu era criança pequena lá em Miracema, ouvia falar daquela terra
que ficava logo ali, além da divisa, embora nem imaginasse o que
fosse a tal divisa. E aquela terra que ficava a um beiço dali,
chamavam simplesmente de Minas. Via o ônibus passar por ali, bem na
frente de casa, levando pessoas que queriam ir para aquelas Minas:
para Palma, Laranjal, Leopoldina e Cataguases, itinerário do ônibus,
cidades, que logo aprendi, ficavam do outro lado da divisa.
E
foram muitos os ônibus que cruzaram aquelas ruas empoeiradas antes
que um dia eu também pegasse aquela estrada para adentrar Minas,
para cruzar o coração daquela terra desconhecida e aprender, na
prática, que aquilo que eu já então via nos mapas era muito mais
longe que a imaginação. E lá bem longe, cruzando dos pés ao peito
de Minas, léguas perdidas de tempo e estrada, cheguei em Campo Belo.
Em
Campo Belo eu aprendi que eu era um papa-goiaba, para a minha não
surpresa, pois me era algo muito natural, já que crescera no meio de
um quintal infestado por goiabeiras de todos os tipos, de goiabas
doces e suculentas, goiabas-pera, goiabas brancas, goiabas vermelhas,
que lá pelas Minas só existiam em arremedo, bichadas, areentas e
sem sabor. Goiabas que jogávamos nos tachos duas a três vezes por
semana, no verão, para ficar fugindo dos espirros que queimavam como
brasa até que o caldo grosso virasse a massa de saborosa
goiabada, que hoje em dia, saudoso, procuro sem encontrar o sabor.
E
lá naquela terra tão perto de Minas, e tão longe devido a minha
condição de criança, ainda ouvia que lá em Minas também existia
uma cidade de doidos, chamada Barbacena, para onde os doidos de cá
eram levados, e para lá nos ameaçavam levar quando fazíamos alguma
doideira! E corria pelas bocas satisfeitas do bom dito que o lugar
não era para os mineiros, pois "mineiro não fica doido,
piora!"
Naquelas
viagens, no espaço entre dois ônibus, parava em Leopoldina para
almoçar, e foi lá que conheci um ser estranho, estranho para mim,
pois muito comum naquelas paragens, um mineiro. Algo havia de
ameaçador naquele epíteto, pois ouvia falar de um tal Mineirinho,
bandido famoso que aterrorizava o Rio de Janeiro naqueles tempos. Mas
esse mineiro que conheci não metia medo, do alto do seu sorriso
franco e gozador mais parecia o Mineirinho do Ziraldo, o Comequieto!
Dizem
que criança quando cresce é como passarinho, tem que voar para
outras paragens para construir o seu ninho, mas esse mineiro, da
inusitada alcunha Geraldo Seoldo, não era um simples passarinho, era
uma ave migratória de asas potentes, sem medo da Águia, que não se
contentou com sua terra para tecer o seu berço e foi arribar em
terras longínquas. Para não deixar a saudade bater com muita força,
deixa as montanhas para trás e nidifica nas areias de um deserto,
onde sua mineirice dá faniquitos de saudades de quando em quando e
arremete-o nas lembranças:
Casas
entre bananeiras
mulheres
entre laranjeiras
pomar
amor cantar.
Um
homem vai devagar.
Um
cachorro vai devagar.
Um
burro vai devagar.
Devagar...
as janelas olham.
Eta
vida besta, meu Deus.
(Cidadezinha
Qualquer - Carlos Drummond de Andrade).
Há
momentos em que penso que ele foi atraído por aquela vastidão de
areia porque a sua alma mineira chorava de solidão pela ausência do
mar, e aquela praia sem fim refletia a miragem do seu sonho. Por
outro lado, em outros momentos, penso ter sido um ato de extrema
sabedoria, pois "a única verdadeira sabedoria vive longe da
espécie humana, lá fora, na grande vastidão, e só pode ser
atingida através do sofrimento; só a privação e o sofrimento
abrem o entendimento para tudo o mais que se esconde"
(Igjugarjuk - xamã de uma tribo esquimó caribou - citado por Joseph
Campbell em O Poder do Mito).
Mas
não há águia que possa carregar em suas asas a saudade de um
mineiro, as lembranças a ativam e o trazem de volta para sua gente
perdida entre as serras das Gerais. Aqui encontra seus antigos
camaradas num abraçar único de cinquenta anos de ausência, pois:
O
Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas
o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque
o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
...
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem
está ao pé dele está só ao pé dele. (Alberto Caeiro)
III
-
Mas por que você diz que não te querem lá?
-
Porque eles exigem que eu lhes peça autorização para lá entrar, e
põem empecilhos para minha viagem, prefiro ir para lugares que nada
me exigem.
Foi
em uma conversa assim que a Judite, esposa do Mineirinho, agarrada lá
naquelas terras com laço de sangue, tentava quebrar a minha arredia
intolerância em visitar a terra da águia. E também faltava
livrar-me do pavor que aquele dinheiro miúdo deles transmite com
aquele olho escancarado que tudo vê e tudo vigia.
O
tempo foi cuidando de quebrar as barreiras, até que em uma conversa
pelo Skype ruíram todas as objeções. Mineiro adotado que sou,
piorei! Já atiçado pelas memórias das fitas americanas que
mostravam aquelas paisagens estonteantes, concordei em irmos a
Tucson, eu e a Rose. Já estamos preparando a mala para partir no dia
09 de abril e permanecer com Seoldo e Judite por dez dias da
primavera.
Se
tiverem algum mimo que possamos levar para o casal, façam-no chegar
até aqui, desde que não seja um queijo minas, pois a imigração
decerto o localizaria pelo cheiro sem mesmo abrir a mala, e que não
seja muito pesado, pois minhas costas precisam ser preservadas para a
longa viagem.
***
Obras
citadas neste texto (em ordem de citação):
1.
Black Elk Speaks – livro de 1932 do poeta e escritor americano John
G. Neihardt, que narra a história e a espiritualidade de Black Elk,
um curandeiro da tribo Oglala Lakota (Sioux).
2.
Zabriskie Point – filme de 1970, dirigido por Michelangelo
Antonioni.
3.
Stagecoach – no Brasil, No Tempo das Diligências – filme de
1939, dirigido por John Ford, com John Waine interpretando Ringo Kid.
4.
Easy Rider – no Brasil, Sem Destino – filme de 1969, dirigido por
Dennis Hopper, com Peter Fonda, Dennis Hopper e Jack Nicholson.
5.
Broken Arrow – no Brasil, Flechas de Fogo – filme de 1950,
dirigido por Delmer Daves, com James Stewart e Jeff Chandler.
6.
Mineirinho, o Comequieto – personagem de cartuns de Ziraldo,
publicado originalmente na revista O Cruzeiro.
7.
Cidadezinha Qualquer – poema de Carlos Drummond de Andrade, do
livro Alguma poesia de 1930.
8.
The Power of Myth – no Brasil, O Poder do Mito – livro de 1988
que transcreve entrevista entre Bill Moyers e Joseph Campbell.
9.
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia – poema
de Fernando Pessoa, publicado pelo seu heterônimo Alberto Caeiro em
O Guardador de Rebanhos.
Benvindos a Arizona, Siovani/Rosimere, o lugar que tem um POR DE SOL dramatico!!! Como diz um dito irlandes, o qual ja usei varias vezes com gente dai :"Que os ventos sempre soprem nas suas costas empurrando-os com seguranca e que os caminhos se levantem na frente para abracar-lhes com alegria!". Vamos fazer o possivel para decodificar os segredos do deserto para que aparecam flores por todas as partes: nos cactos, entre as pedras e,ate nas sombras das areias e nos caminhos das diligencias.... Porem, nao podemos remover montanhas para evitar as subidas nem fazer goiabada em tacho de cobre, nem calar os coiotes durante as noites de lua... Mas sim podemos saborear comidas meio apimentadas da cultura mexicana, bem como beber umas e outras "margaritas". --- Finalmente, devemos confessar-lhes, ja que estao firmes de passagens nas maos, os seguintes pontos 'caretas' nao mencionados em nossas conversas:
ResponderExcluir----Definitivamente nao podemos controlar:
- os latidos dos cachorroes dos vizinhos de cada lado e enfrente (Este nosso bairro eh o que tem mais cachorros!!!)
- os onibus escolares que passam buzinando mesmo na frente de casa desde as 6 horas da manha;
- os ruidos apocalipticos dos jatos de guerra desde as 5 da manha (moramos pertinho de uma enorme base aerea)
- um barulhinho chato que faz um casal de pica-pau amolando os bicos (sei la!) na chamine de alumineo mesmo encima do quarto de visitas (esta
eh a epoca favorita para eles.)
A lista segue, mas vamos parando por aqui...Vao nos perdoando por tudo isso desde agora. Uma coisinha mais, antes que nos esquecamos, como aqui eh deserto, so se toma banho nos sabados. Porem fiquem tranquilos que, por estas bandas, nao ha nenhum tipo de poluicao!!! Seoldo (Bandeirante Easista ainda sonhando em encontrar ouro e prata em Arizona).