Lisboa
Por Siovani
Quer tenha sido
nas salas do Colégio Dom Cabral, ou mesmo antes, nas salas mais crianças do
primário, o menino se revoltava com tantos nomes e datas que lhe cobravam
saber. Se as naves de Cabral, sem lemes, fizeram uma travessia de quinhentos
anos, a minha viagem, há pouco iniciada, também seguiria o rumo do vento. E os
personagens navegavam sobre uma fina tela tecida de grãos de poeira efêmera: eram
reis e governadores, eram senhores das capitanias ou escravos heróis, eram holandeses
invadindo e holandeses expulsos, eram Cabanadas, Sabinadas, inconfidentes, e o
intrépido Arariboia, que lutou com os franceses, atravessou a baía e criou
Niterói. Uma salada que se comia crua para fazer uma prova e que no dia seguinte
se esvaía pelas latrinas. Depois, a cabeça leve novamente já nada guardava dos
episódios, até que outra prova fizesse tudo se acotovelar novamente nos dois
neurônios que se precisava usar. E era assim que a história funcionava, tal
qual o enredo da escola de samba que o Ponte Preta criou.
Foram necessários
alguns anos de amadurecimento para o menino perceber que deveria ter aprendido a
cortar a salada mantendo os ingredientes separados, deixando para juntá-los
quando o molho estivesse pronto para ser devidamente apreciado. E o sabor da história
foi se tornando cada vez mais necessário enquanto ele estudava a matemática e a
engenharia. Forçado a dele se afastar, mais sua fome se fazia sentir.
E começaram as
fugas para o passado na história, lida sempre como se fosse um romance. Como
aperitivo, a nossa história: em alguns momentos, uns tantos vilipêndios, que a
minha cara esquerda aplaudia no ranço deixado pela ditadura; em outros momentos,
Gilberto Freire, Celso Furtado, Hélio Silva, a descoberta de um outro país.
Depois, nos livros de Michelet, o encontro de enredos muito mais excitantes do que
a ficção pode inventar, e desses, retirar a gana para aprender o francês lendo livros
de história da França: Clóvis, Carlos Magno, Joana D´Arc, Luís XIV, a
Revolução, Bonaparte, a Comuna, a humilhação infligida aos alemães que permitiu
erigir um monstro que ameaçou a
Europa.
As ruas já não
mostravam seu ar a quase ninguém, escuras e vazias nas imediações do hotel. O
dia tinha sido de maravilhas e cansaço, mas ainda não estávamos saciados pelas
belezas de Lisboa. Queríamos mais. Queríamos uma pequena ceia que nos trouxesse
novamente o doce cheiro do azeite sobre talvez... qualquer coisa portuguesa.
Mas parecia que ficaríamos frustrados, pois tudo estava fechado, era uma noite
de domingo e aquela freguesia não era propriamente um lugar de boêmia.
Encontramos
apenas um pequeno boteco, uma única porta com uns minguados três fregueses, que
mesmo assim eram quase suficientes para encher o local. No balcão um casal
atendia e, ainda, uma menina adolescente, o que dava ao lugar um aspecto
bastante familiar. Como nos informaram que podiam servir-nos algum sanduíche, acomodamo-nos
à espera. E foi como se brilhasse, inusitadamente, a varinha mágica de uma fada
travessa.
Senti-me aos
poucos entrando nas páginas de um livro do Eça ou do Camilo, ao poder ser o
auditório para as conversas que rolavam. Deliciei-me avaramente com a conversa
que um senhor, já com os seus cabelos brancos, entretinha com o casal e com a
menina. Ele já consumira um tanto mais que o devido de bagaceira, a fala já um
pouco alterada, mas mostrava ser freguês velho conhecido do casal. Não me
recordo mais do teor da conversa, mas quando o senhor se dirigia à menina, com
seu sotaque português característico e carregado pelos vapores espirituosos,
dava-lhe, algo que soava tanto cavalheiresco quanto anacrônico, o tratamento de
Senhora Dona Menina. E toda vez que se dirigia à rapariga parecia que uma
mariposa lhe saía da boca, girava em torno à luz-menina e voltava a ser
deglutida, para novamente recomeçar, girando ao redor da menina. E ele soltava
a mariposa insensatas vezes, para o meu maior contentamento.
Antes mesmo de
terminarmos nossa refeição, ele se despediu e saiu um tanto cambaleante pela
noite de Lisboa. Eu também de lá saí recompensado por haver vivido um pequeno
pedaço típico da cidade, do povo, do português vivo em seu ambiente mais
revelador. Surpresa melhor seria apenas se o
possível fantasma de Fernando Pessoa estivesse ali, naquele boteco, sentado a
escrever como no quadro de Almada Negreiros, sobre aquela página em que eu
podia ser um apagado personagem.
E foi por efeito
do meu deslumbramento nessa noite que dei o nome da mariposa a um personagem
que criei, Senhora Dona Menina, mas esta, só é uma menina pela vivacidade de
espírito, pois os anos já lhe deram alguns netos. Dona Menina, que espero poder
lhes apresentar, é uma senhora muito religiosa, mas de uma religiosidade sem
beatices, livre de amarras dogmáticas. Católica Apostólica Romana, como faz
questão de salientar, vive às turras com o vigário do lugar. Ela encarna a
sabedoria típica do nosso povo do interior, e talvez mesmo, daquele povo
ancestral antigo que nos legou Cabral.
Lisboa me deixou um presente e a ternura que
lhe tenho enche meus dias de saudades.
Bom dia Siovani! Vim conhecer o blog, gostei da crônica, viajei um pouquinho para Lisboa com ela.
ResponderExcluirSempre que tiver por aqui, vou dar uma passadinha por aqui, tá.
Um abraço
Fiquei muito, muito impressionado com o texto. De repente eu, que nunca tinha pensado no assunto, sentí uma enorme vontade de conhecer Lisboa. Valeu Siovani ! Voce é mesmo um craque.
ResponderExcluirAbraços - Benone